terça-feira, 27 de março de 2012

Desigualdade


          É noite, e sinto a barriga cheia do que comi por todo o dia. A brisa fresca adentra minha casa confortável, e escrevo defronte um notebook de ponta, com processador de alta capacidade, desses bem caros. Vivo por enquanto do que foi construído para mim, mas sei que a educação que me é paga hoje me garante, em tempos futuros, prosperidade ainda maior. Eu sou feliz. Sofro das dores menores da jovem alta sociedade - amor não correspondido e outras mágoas; mas estas não impedem de ser feliz, e nem devem.
          Sinto a barriga cheia, mas penso num pedaço de bolo. Antes que alcance-o, logo ali, na minha geladeira, me vem, em minha mente, num relâmpago, a imagem de um pequeno garoto passando fome. Enquanto meu abdômen distende-se numa pança bem-abastecida, a dele está entupida de vermes. Eu olho nos olhos dele, e ele me pede o pedaço de bolo que está logo ali, ao alcance das minhas mãos. E antes que eu possa dizer que é impossível, ele se esvai na obscuridade de meus pensamentos mundanos, e minha barriga ronca falsamente por bolo – bolo este que agora me traz sérias duvidas existenciais. Impressionante, como coisas simples nos fazem perceber a complexidade da realidade – ou melhor, a sua feiura.
          Me afasto do objeto de tentação e vou para meu quarto. Meu irmão está jogando videogame, a lâmpada está acessa, meu pai está usando o computador no outro quarto e a televisão da sala está ligada. Quero muito tocar meu teclado – mas é elétrico, e todos os dias somos bombardeados com lições morais sobre como o consumo de energia acarreta problemas ambientais, e como isso maltrata o planeta e tira o futuro das próximas gerações. E penso, inocente: “Mas eu só quero tocar...” Porém, um lado mais forte e consciente me afasta dos desejos mundanos da vida moderna, mais uma vez. Recebo uma ligação – uma amiga querendo conversar. Já é bem tarde, e a maioria das lâmpadas está desligada, os computadores e a TV também. Converso com minha amiga, e acabamos numa briga. Ela desliga o telefone na minha cara – e automaticamente me entristeço. E, pela terceira vez, penso nas pessoas lá fora, aquelas que estão realmente sofrendo a verdadeira tristeza. E sinto como se tivesse cometido um crime hediondo, apenas por me magoar com alguém.
          Volto à sala novamente, para me bater com o pedaço de bolo mais uma vez. Dessa vez eu abro a geladeira, e olho bem para ele. Penso no garoto passando fome, e penso na desigualdade, no absurdo que a vida é hoje. Ele passa fome, mas e eu? Será que devo me sentir culpado? E por gastar energia? Será que devo me entristecer por degradar o mundo na busca pelo prazer? Não sei.
          Eu como o pedaço de bolo?

domingo, 11 de março de 2012

A Parede (The Wall)

Antes de começar esse conto, queria só explicar que eu o escrevi em inglês, então a versão original (apresentada abaixo desta) está bem melhor, e é recomendada para quem consegue ler em inglês.

          Você está sentado sob um muro enorme, gigantesco. Você não sabe por que você está lá, nem porque o muro está lá, mas você sabe que é onde tem que ficar, pois antes de você só há trevas, e por trás da parede há algo misterioso, que você não pode ver, porque a parede é muito alta. Então, de repente, desenhos começam a aparecer nesta parede. Os desenhos fluem rapidamente entre os tijolos, e eles são bonitos, e você e as outras pessoas que então começam a aparecer ao seu lado estão surpresos em vê-lo. Você percebe as outras pessoas, e você fala com elas. Você começa a caminhar ao lado da parede, lado a lado com as pessoas, e você descobre que eles conhecem outras áreas da parede, com outras pinturas, desenhos e outros tijolos. Eles mostram suas áreas, e você mostra a eles a sua.
          Então, de repente há pedras em seu caminho. No início, elas são pequenas, mas você também é, e você não percebe que as pequenas pedras não são realmente um problema. Você começa a ficar melhor em evitar as rochas, ao passo que elas começam a ficar maiores. Então você precisa de ajuda das outras pessoas próximas a você - aqueles a quem agora você chama de amigos - para passar pelas rochas. Alguns dos obstáculos precisam ser escalados, e alguns deles são muito lisos e altos para você subir, então você precisa contorná-los; mas naqueles em que você só precisa de um ponto de apoio para escalar, você pode sempre contar com seus amigos para ajudá-lo. E, em algum momento no caminho da parede, eles vão usar a sua ajuda também.
          Quando você já andou um pouco após o início, uma de muitas outras pessoas aparece para você e sorrir, e essa pessoa é tão linda quanto os desenhos na parede; na verdade, essa pessoa começa a aparecer em alguns dos desenhos que estão mais perto de você. Você começa a sentir algo especial por essa pessoa, tanto que, às vezes você esquece de olhar para trás e ver o quanto as outras pessoas sentem o mesmo sobre você. Você chama essa pessoa de seu "amor".
          Quando você passa por um quarto do caminho, você vê dois lances de escadas: um sobe, o outro desce. O primeiro é uma escada, alta e estreita, com tantos degraus que você não pode ver o fim, mas parece que há algum tipo de recompensa para cima. Este último parece pequena, com degraus baixos com muito espaço para colocar seu pé - o tipo de escada que você desce facilmente, mas está escuro lá em baixo... Você vê alguns de seus amigos irem por esse caminho, e você pensar em ir lá também, quando alguém coloca uma mão em seu ombro. É o seu amigo mais valioso. Ele diz que esse caminho não é bom, que você deve ir para a escada difícil, porque esse é o caminho certo. E então você vai para cima.
          É um caminho tortuoso, os pequenos e altos degraus que empilham-se uns sobre os outros, e não poucas vezes, você pisa no lugar errado e cai, só para subir de volta o caminho todo acima. É difícil, mas, no final, você está lá. E é lindo. Luz em todo o lugar, tudo é mais claro e é muito espaço. A única coisa que não mudou é a parede: ainda é inimaginavelmente alta. Você começa a andar para a frente mais uma vez, e os amigos que tenho lá antes de cumprimentá-lo. Você olha para baixo por um momento, e você vê a escuridão abaixo, e, das profundezas do submundo que você decidiu não rastejar, você ouve gritos, e sinto muito por aqueles que trilhou o caminho ruim.
          Agora você pode ver as pessoas construindo escadas na parede, tentando alcançar o topo, mas não há degraus suficientes, e eles nunca conseguem descobrir o que está no outro lado. Afora essas pessoas, há outros, que dizem que há beleza e felicidade por trás da parede, e que o outro lado é o nosso destino final, é o lugar para onde todo mundo está andando. Enquanto as pessoas da escada dizer que não existem provas disso, os outros dizem que você só tem que acreditar.
          Então, você encontra uma vez mais o seu "amor". É essa mesma pessoa que você conheceu antes das escadas, e vocês começam a conversar.Você se sente compelido a dizer que você a ama, e você acaba dizendo. E então, seu coração quebra em um milhão de pedaços: ela não te ama de volta. A pessoa vai embora lentamente, e você acha que você nunca vai encontrar alguém para amar de novo, que a solidão será sua única companhia para sempre. Você mantém sua cabeça baixa por um tempo, e então, quando você finalmente olha para a frente de novo, lá está ela: alguém que você nunca tinha notado, mas que estava lá o tempo todo. Ela sorri, e você sorri de volta.Vocês dois estão felizes.
          Um tempo passa, e você finalmente chega ao fim da estrada. Ao longo do caminho, você aprendeu a saltar as rochas sem esforço, a admirar os desenhos na parede, para sempre seguir os caminhos brilhantes (não importa o quão difíceis eles são, porque eles são sempre gratificantes), e deixar ir aqueles que não fazer bem para você. Você aprendeu e ensinou, e seus ensinamentos serão repassados ​​para as gerações. O fim do muro está bem à frente, e você está de mãos dadas com o seu novo amor. Vocês sorriem pela última vez, antes de cruzar o caminho iluminado para os mistérios por trás da parede. Você fez tudo direito. Um passo para a frente, e deixe seu corpo e mente mergulharem na plenitude. E está tudo bem.

(Original)

          You’re sitting by a huge, gigantic wall. You don’t know why you’re there, or why is the wall there, but you know you gotta stay there, since ahead of you there’s only darkness, and behind the wall there’s something misterious, which you can’t see, because the wall is too high. Then, suddenly, drawings start to appear on this wall. The drawings flow swfitly between the bricks, and they’re beautiful, and you and the other people that start apearing next to you are amazed in seeing it. You notice the other people, and you talk to them. You start walking by the wall, side by side with those persons, and you find out that they know other areas of the wall, with other paintings, other drawings and other bricks. They show you their areas, and you show them your’s.
          Then, there are suddenly rocks in your way. At first, they’re small; but so are you, and you don’t realize that the small rocks are not really a problem. You start getting better at avoiding the rocks, as so as they start getting bigger. So you need help from the other people arround you – those whom you now call friends – to get past through the rocks. Some of the obstacles need to be climbed, and some of them are too slick and tall for you to climb, so you need to go arround them; but those in which you just need a foothold to clamber, you’ll can always count on your friends to help you. And, at some point at the wallway, they’ll use your help too.
          When you have already walked a bit past the beginning, one from the many other people appears to you and smile, and this person is as beautiful as the drawings at the wall; in fact, this person starts to appears in some of the drawings that are closer to you. You start to feel something special for this individual, so much that, sometimes you forget to look back and see how much other people feel the same about you. You call this person your “love”.
          When you get past through a quarter of the way, you see two flight of stairs: one is going up, the other is going down. The former is a high, steep stairway, with so many steps that you can’t see the top of it, but it feels like there’s some kind of reward upwards. The latter looks like small, with short steps with plenty of space to place you foot – the kind of stair you easily walks down; but, it’s dark down there... You see some of your friends walking this way, and you think about going there too, when someone put a hand in your shoulder. It’s your most valuable friend. He tells you that this way isn’t good, that you should go for the hard ladder, because that’s the right way. And then you go up.
          It is a tortuous path, the small steps piling over each other, and not a few times, you step in the wrong place and fall down, only to climb back the hole way up. Is hard, but, in the end, you’re there. And it’s gorgeous. Light all over the place, everything is clearer and it’s plenty of space. The only thing that haven’t changed is the wall: it is still unimaginably high. You start to walk ahead once more, and the friends that got there before greet you. You look down for a moment, and you see darkness below, and, from the depths of the underworld you decided not to crawl in, you hear screams, and feel sorry for those who walked the bad path.
          Now you can see people building ladders at the wall, trying to reach is top, but there are not enough rungs, so they can never know what’s in the otherside. Aside from these people, there are others, who say that there’s beauty and felicity behind the wall, and that the otherside is our final destiny; it’s the place for where everyone is walking. While the ladder people say there are no proofs of that, the others say you just have to believe.
          Then, you met once more your “love”. Is that same person you’ve met before the stairs, and you both start talking. You feel compelled to say that  you love the person, and you end up saying so. And then, you heart break at a million pieces: she doesn’t loves you back. The person goes away slowly, and you think that you’ll never find someone to love again, that loneliness will be your only company forever. You keep your head low for a time, and then, when you finally look ahead again, there it is: someone you’ve never noticed, but that was there all the time. She smiles, and you smile back. You’re both happy.
          A long time passes, and you finally get at the end of the path. Along the way, you’ve learned how to jump the rocks effortlessly, to admire the drawings at the wall, to always follow the bright paths (no matter how hard they are, because they’re always rewarding), and to let go those who doesn’t do good for you. You have learned and teached, and your teachings will be passed on for generations. The end of the wall is right in front, and you’re hands given with your new love. You both smile for the last time, before crossing the illuminated path to the mysteries behind the wall. You did everything allright. You move foward, and let your whole body and mind dive in completeness. And everything is fine.
                

quarta-feira, 7 de março de 2012

Dente-de-leão e Estrela Cadente

           Estava com os amigos, sentado ao pé de uma parede no térreo de um apartamento. Ao longe, o brilho do Sol reluzia, em seu dourado imponente, contra um prédio baixo, recoberto de ladrilhos. Já há um tempo desligado da conversa, o garoto admira a beleza da luz cálida e acolhedora do fim da tarde, e o céu rosado com suas nuvens. A conversa chega a seus ouvidos, mas seus pensamentos e idéias falam mais alto, e as palavras são facilmente ignoradas, fora quando, vez ou outra, um assunto lhe interessava; ele entrava então esporadicamente, para comentar e deixar suas tímidas palavras surtirem algum efeito em meio à discussão, somente para então voltar aos seus próprios devaneios.
          O garoto, com seus pensamentos, ia longe, em fluxos e jorradas repentinas de lembranças que iam e vinham, sempre por alguns segundos, uma cedendo lugar à outra em uma sucessão de sentimentos que aquelas imagens e emoções relembradas lhe traziam. Aquelas férias foram especiais. Lembrava-se de como queria que fossem as melhores, e de como a incerteza lhe deixava temeroso. Mas suas preocupações adolescentes esvaiam-se rapidamente, e com sua mágica e tão fantasiada liberdade de dois meses se aproximando lentamente, ele procurava maneiras de garantir sua satisfação nessa empreitada pelo prazer.
          Queria porque queria beijar a boca pequena de Maria. Já era hora, ele dizia a si mesmo, de libertar-se de suas correntes que prendiam-no à um patamar inferior à seus colegas; era hora, dizia a si mesmo, de crescer. Devaneara por muito em mil maneiras de tocar aqueles lábios suntuosos com os seus; pois o que tinha de ingenuidade, tinha de imaginação, e em seus sonhos podia sentir o toque perfeito da boca magnífica que era a da garota com que sonhava. Maria vinha visitar, vinda de bem longe – seus pais eram antigos colegas de trabalho; suas mães não se davam bem (pequenos pormenores), e ele havia estado muito ansioso por aquela visita especial. Não via sua amiga há muito, desde que eram pequenos. Mas sonhava, e como sonhava!
          Perdido em seus pensamentos, não percebeu quando virou o assunto da conversa de seus colegas do lado de fora. Riam, mas risos de brincadeira, não de deboche. Não o humilhante e pérfido deboche, mas uma brincadeira. “Ela te beijou, não foi?”; e riam.
Mas ele só fez rir junto, para depois voltar aos seus sonhos. Falasse com os amigos depois, ali mesmo não estavam exigindo muito sua presença.
          Querendo por estar querendo, ele começou então, de repente, a contestar os próprios planos. E se não acontecesse? O medo que lhe acometeu foi tamanho, que resolveu tomar suas próprias garantias. Esperou na frente de sua casa, numa tarde qualquer, que viesse o costumeiro dente-de-leão que todo dia aparecia por lá. Catou-o no ar, fez seu pedido e o soprou, pondo toda a sua fé naquele sopro que levou a semente para longe, para o alto. Já pedira à estrela cadente antes, mas nunca a dente de leão. Naquele segundo, pensou se não estaria errando ao manter aquelas idéias infantis na cabeça, mas lembrou dizerem que certas virtudes não se abandonam, achou bonito, e manteve sua fé.
          Então veio Maria. Bonita como nunca e ninguém, com seu corpo bem formado, seu rosto singelo e sua boca pequena, adentrou a porta da casa com um olhar meio perdido, como quem procura uma referência. Seus olhos percorreram o lugar lentamente, e por fim se puseram no rosto do garoto, num sorriso que lhe brilhou os olhos e iluminou o coração, agora ansioso e palpitante. Abraçaram-se, e pais e mães ficaram para trás quando foram lado a lado por entre a casa. Deixaram a mochila de Maria no quarto e partiram para o quintal, para as flores e para os pássaros, que não foram pouco calorosos em sua recepção colorida do casal que adentrava seu meio.
          A conversa do lado de fora ganhou mais risadas, e de súbito, gargalhadas. Arrancado de seus devaneios, o garoto olhou confuso para seus amigos, mas a gargalhada não parecia ter motivo dos mais engraçados. Até lhe recontaram a piada, antes que ele voltasse para seu interior, e ele fingiu que riu, e fingiu bem, para depois voltar... onde estava mesmo? Ah, no banco. O banquinho de madeira branca que tinha no jardim. Maria falava, e tinha tanto para falar! Conversava como ninguém, e sua fala mansa, sua voz tão meiga embriagava os sentidos, entorpecendo o garoto, que ainda assim não perdia o foco em nada do que ela lhe dizia. Falava-lhe de gostos, idéias, lembranças, lugares. Falava-lhe muitas coisas, e o garoto, que antes temera não saber o que dizer, via-se imerso em tanto assunto, que difícil era não falar nada. Comentava, respondia, concordava, e a conversa andando. Maria, seu sonho, tão bela, tão bonita; ali, em sua frente... será que ela pensava o mesmo?
          A conversa rumou para a música, e voltaram à casa para sentar-se ao piano da sala de estar, e o garoto tocou as mais belas canções, e Maria sorriu o mais belo dos sorrisos, e os dois amaram-se, um ingênuo amor dos mais belos, onde a simples sintonia torna desnecessárias palavras e gestos. As notas tocadas com paixão ressoavam por toda a sala, e o todos os sentimentos, traduzidos em som, adentraram o coração de Maria pelos seus ouvidos, e Maria, sentada ali ao lado, apaixonou-se.
          Pronto! Francisco (o garoto) era agora puro êxtase, sentia os corações palpitarem juntos e os sentimentos transporem quaisquer barreiras físicas que lhes eram impostas. Seus desejos haviam sido realizados. Tocado o último acorde dá última música, ele se virou, e ela estava a um palmo de seu rosto, com sua boca pequena entreaberta e seus olhos fechando-se, o calor da respiração dela em seu rosto...
          - E você, Chico? – seus amigos tiram-no novamente de suas lembranças. – Acredita em fita do Bonfim pra realizar desejo?
          Depois de pensar por alguns segundos, respondeu:
          - Nunca tentei...
          - Mas acredita em alguma outra coisa?
          Com um sorriso, disse: - Sim. Dente-de-leão e estrela cadente.
          Os amigos riram. Não era o pérfido deboche, eram só risadas com as quais já se acostumara. Refletiu que que não era o ato de soprar o dente-de-leão, ou secretar seu pedido à estrela cadente; mas sim acreditar naquilo que tornava os desejos realidade. Seus olhos perderam-se novamente no horizonte. Ao longe, o Sol brilhando em seu dourado imponente.