segunda-feira, 16 de abril de 2012

Cobras, amigos, sentimentos, hábitos, humanos.

     Despelar não é legal. Estou me sentindo uma cobra, com esses buracos em forma de bolha estourada na minha pele... Não é legal. Mas pelo menos é minha pele que está saindo – pele é tudo igual; mas e quem está se desfazendo de coisas que importam? E quem se despega de amigos, familiares, hábitos, sentimentos? Enquanto eu reclamo de um excesso de feiúra efêmero, existem pessoas despelando uma vida inteira lá fora. E o pior é que eu sei que vai acontecer comigo – intenso ou suave – mas isso vai acontecer. Acontece com todos.
     Vai chegar um dia em que eu vou ver que estou usando uma pele totalmente nova – e quando olhar para o que deixei pra trás, espero não entristecer, por ver amigos ali, por ver emoções, hábitos, facilidades que nunca duram... depois olhar para as mãos e ver nelas apenas lembranças.
      É preciso fazer isso. Sempre acontece, não há como evitar. Mas eu tenho certeza que tudo vai estar bem quando acabar – quando a pele nova me envolver por completo. Só não quero esquecer daqueles que fizeram parte do que veio antes. Não quero. Quero manter o que puder do que tenho hoje, quero continuar sendo feliz. Talvez inocente, mas quem sabe? Eu espero levar meus melhores amigos pra sempre, e vou dar meu máximo para isso. Porque ninguém despela o corpo todo – não humanos, pelo menos, esqueçamos as cobras – e o que é velho as vezes é melhor do que certas coisas novas. Quem não já se sentiu atraído pelo desconhecido, por pessoas, coisas, sentimentos que se mostraram ser nem tudo o que realmente eram?
     Não quero, então, me desfazer de tudo. Vou dar adeus ao que não vou precisar e levar comigo aqueles que couberem na mala. Nem que todos viajem bem apertados, entupindo meu coração cada vez mais cheio. Estou me sentindo uma cobra. Despelar não é legal. 

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A outra forma de ver

     No início desse ano, recebemos um aluno cego em nossa sala de aula. Era o primeiro integrante da turma com alguma deficiência, e alguns não sabiam lidar com isso. Faziam brincadeiras, deboches e até mesmo atazanavam o pobre coitado - infantilidade, diziam os professores, mas a infância normalmente é sinônimo de inocência; o que eles faziam era perversidade. Mas ele era uma pessoa boa, e nunca perdia a paciência. Pouco tempo antes de eu e ele começarmos um amizade, passou-se um caso interessante.
     Uma garota da nossa sala, Marília, começou a conversar com Nataniel (o garoto) desde que ele chegou na sala. Andavam juntos para todos os cantos, ela o acompanhava onde quer que ele fosse e estavam sempre conversando. Formavam um casal bonito, e era bom ver os dois juntos; Marília nunca tivera muitos com quem conversar, só algumas poucas amigas. Tachavam-na de feia, boba, ridícula... mas não era nada disso. Marília era extremamente divertida e inteligente, e tinha um coração puro, livre de maldades e de qualquer frieza. Se deu bem com Nataniel de imediato.
     Um dia, quando Nataniel já tinha feito alguns amigos, estes, conversando com ele, "alertaram-no":
     - Rapaz, tome cuidado... essa Marília é feia que dói! - e riam.
     Nataniel balaçou a cabeça em desaprovamento, o sorriso de todos os momentos no rosto.
     - Vocês esquecem que eu não tenho olhos... E essa privação me faz ver de outra maneira. Diferente de vocês, enxergo com o coração, como todos deveriam enxergar; isso faz da minha cegueira não uma deficiência, e sim, uma virtude. Vejo as pessoas como elas são, e, se enxergassem como eu, veriam o quão bonita ela realmente é.
     Aquilo me fez pensar. Sim, a maioria de nós vê com os olhos - mas não nos seria melhor, e mais vantojoso, ver com o coração? Talvez assim pudessem ser evitadas tantas futilidades do mundo humano, talvez assim pudessesmos ver todos como realmente são, e dar a cada um o valor que merecem. Talvez assim, não excluíssemos quem apenas por um detalhe é diferente de nós, e aí sim seríamos, pelo conceito que nós mesmos estabelecemos, humanos. Nataniel me ensinou algo que vou levar para a vida inteira naquele dia, e espero que muitos outros ainda possam aprender com ele - pois mesmo sem seus olhos, ele consegue ver muito além de pessoas que dizem enxergar perfeitamente.