segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Vicky

          Abro os olhos e penso nela. A felicidade que me acomete só de saber que irei vê-la dentro de meia hora é suficiente para me tirar da cama. Tudo escorrega para seu lugar numa manhã lenta como todas as outras, enquanto a ânsia de meu coração de retomar o ciclo semanal que incluí vê-la todas as manhãs, pensar nela todas as tardes, tê-la em meus sonhos todas as noites e ligar para ela aos finais de semana tenta acelerar o ritmo das coisas.
          Vicky sempre foi a menina mais bonita da sala nos tempos de escola. É impossível descrevê-la, porém sei que a interpretação de beleza muitas vezes tem um certo teor pessoal que impede que todos vejamos a mesma pessoa da mesma maneira, então sei que assim é melhor, pois a imaginação é ótima no que faz.
          Vicky não sabia do meu amor por ela, e éramos ótimos amigos. Mas a amizade não durou tanto quanto eu desejava. Um dia ela descobriu, e curiosamente, a partir deste dia, ela não falou mais comigo com a mesma frequência de sempre, e os abraços se foram se tornando cada vez mais raros, escassos. Enquanto eu me perdia em lágrimas à noite, imaginando o porquê do cruel afastamento, ela parecia inalterada, à exceção de certos momentos quando olhava para mim por poucos e preciosos segundos, e seu olhar parecia levemente preocupado, mas esses momentos passavam rápido. Uma de poucas amigas mulheres que eu tinha me dizia que era normal, pois se ela havia descoberto, provavelmente iria se afastar, pois achavam estranho ser amiga de alguém que tem paixão por você... 
          Os anos se passaram, e aos poucos ela voltou à falar comigo. No fim do último ano letivo, quando todos nos preparávamos para a faculdade e desenhávamos projeções do que queríamos ser, e como queríamos que fosse a nossa vida; já éramos novamente amigos como havíamos sido antes de ela descobrir. Eu sempre havia sonhado em ser diretor de cinema, mas Vicky ainda parecia não ter certeza sobre o que queria fazer. Queria muito passar os próximos anos com ela, então tentei por todo o ano convencê-la a ser uma atriz, o que agradava a ela tanto como a mim no início, e eu sorria à possibilidade de não ter que abandoná-la ao final do ano, pois se fizesse escola de atuação, seria em minha mesma faculdade, como havíamos combinado.
          Porém algo aconteceu, e Vicky mudou de idéia. Dizia que não tinha capacidade para ser atriz, e que provavelmente esmaeceria em meio a todas as beldades do cinema, às quais, segundo ela e a contragosto meu, ela nem se equiparava. Tentei desesperadamente convencê-la novamente à me acompanhar, mas ela disse que não poderia, e que por mais que quisesse, seria impossível. Certo dia, à noite, no colégio, lhe pedi, às escuras e bem baixinho:
‘Foge comigo?’
Ela escondeu um sorriso que substituía perfeitamente um pedido de desculpas. Eu interpretei como um ponto final.
          No ano da faculdade, fui para Nova York fazer cinema, enquanto Vicky decidiu-se pela Geologia, não soube aonde. Na despedida, um abraço caloroso que jamais esquecerei. Os anos que passei naquela cidade lotada de todo tipo de gente foram dolorosos sem ela ao meu lado; se as ruas de Nova York fossem artérias, a cidade morreria de entupimento. Mas era possível, ao menos no ambiente juvenil da faculdade, encontrar boas pessoas. Fiz muitos amigos, mas não cheguei a conhecer ninguém como Vicky.
          Um ano após terminar a faculdade, recebo um telefonema vindo do Brasil.
‘Marco? Sabe quem está aí em Nova York?’
Meu coração acelera enquanto prevejo a resposta que faz meu coração se preparar para limpar a casa para a visita que esteve fora por tanto tempo.
‘Vicky! Pelo que soube, terminou os estudos e está morando por aí.’
Desesperado, corro à internet para tentar de qualquer jeito descobrir onde ela mora. Consigo em seu perfil de uma rede social, e corro para encontrá-la.
          Porém o destino é sadicamente cruel. No caminho para seu apartamento, cruzo com ela de mãos dadas com o noivo. Ela me cumprimenta. A alegria de revê-la naquele momento é a única coisa que me impede de explodir em lágrimas no mesmo instante, em meio à plena Quinta Avenida. Furioso com tal peça que a vida me prega, decidi passar mais cinco anos juntando dinheiro para viver pelo mundo. Após passado todo o tempo que passei em agonia, me lanço em minha viagem desesperada. Foram dois anos vivendo nômade, sem casa, conhecendo o mundo. Nesse tempo, conheci milhares de outros casais, que viraram amigos íntimos meus. Um desses casais me contou uma história que devolveu aos meus olhos um brilho perdido há tempos. Ela nunca havia dado valor ao amor que ele tinha por ela, até que um dia, ele se declarou a ela com um poema que, segundo ela, foi o mais lindo do mundo. Percebi que eu nunca havia dito tudo a Vicky, nunca havia expressado todo o meu amor em sua forma completa a ela. Tomei então uma decisão difícil, pois enquanto meu coração mandava que eu fosse atrás dela desesperadamente, meu cérebro me dizia que seria ainda mais doloroso perdê-la mais uma vez. Pela primeira vez na vida, ouvi apenas ao coração.
          Resolvi que durante toda a viagem de volta, iria compor a mais bela de todas as declarações para dizer à ela que a amava. Passei meses escrevendo, pensando nas frases mais belas, extrapolando minha criatividade a níveis inéditos. A beleza do que eu escrevia era tanta que eu me apaixonei pelas palavras, e resolvi que quando voltasse, não viveria mais do cinema, e sim, da escrita. Após escrita a declaração de cinco páginas, páginas estas que eram folhas de papel conseguidas em hotéis em que me hospedei no caminho de volta, enquanto meu dinheiro ia alcançando níveis perigosamente baixos, me esforcei para memorizá-la, o que foi a parte mais difícil.
          Por fim, eu estava de volta à Nova York. Levava comigo apenas mais alguns yuans no bolso, que troquei por um punhado de dólares que permitiram acesso à uma Lan House, onde mais uma vez, como havia feito há sete anos atrás, descobri aonde ela morava. Usei parte da mísera quantia que me restava para comprar roupas novas e um barbeador, o que me deixou com centavos no bolso. Andei até seu apartamento, pois não tinha carro nem dinheiro suficiente para nenhum meio de transporte que fosse, e a caminhada me deixou exausto. Por fim, cheguei ao apartamento, onde perguntei ao porteiro o andar em que ela morava. Ele me disse que ela não estava. Exausto, me apoiei nas grades e me preparei para esperar o dia inteiro ali. Não tinha aonde ficar; normalmente ficava em hotéis, mas não tinha dinheiro nenhum, e de meus contatos do tempo da faculdade, não sabia onde morava nenhum atualmente.
          Não sei ao certo quanto tempo passou. Era noite, e o frio estava quase me vencendo. Sentia que iria ceder a qualquer momento, e perguntei a mim mesmo como uma paixão poderia fazer alguém sofrer tanto. Porém, naquele momento, Vicky apareceu. Ainda mais linda. Sua beleza era tanta que ao vê-la meu frio passou, aliás, naquele momento, esqueci até mesmo o que frio era. Eu me levantei, e quando ela pôs os olhos em mim, não houve dúvidas que havia me reconhecido, pois o sorriso em seu rosto foi tamanho, assim como o meu, que ela nem precisou perguntar pela confirmação de meu nome; jogou-se aos meus braços e eu me larguei aos seus, deixando aquele abraço recarregar toda a energia que eu havia perdido em toda a viagem. Pude sentir sua felicidade transbordando e misturando-se com a minha, e juntas, as duas felicidades formaram o elixir mágico que se vê nos mais belos reencontros. Ela perguntou o que eu fazia por ali, e eu me preparei para dizer tudo. Subitamente, minha mente se esvaziou. Em meio a felicidade do reencontro, eu havia esquecido cada palavra que havia quase dado meu sangue para decorar, e por alguns segundos, parei como um tolo ali, em frente a ela.
‘Vim ver você’ eu sorri.
O sorriso dela foi ainda maior.
Naquele momento, eu simplesmente disse tudo o que veio do meu coração. Quando terminei, os olhos dela brilharam junto aos meus, quando percebi que ela não mais ostentava uma aliança no dedo anelar.


Cinco anos depois

Abro os olhos e penso nela. Olho para minha esquerda, a vejo deitada ao meu lado, e sorrio. Nunca estive tão feliz.

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